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Mudanças contábeis: um divisor das águas tributárias no Brasil

Fonte: Valor Econômico
Roberto Haddad Assunto dos mais quentes na área tributária hoje em dia, as mudanças seqüenciais e a toque de caixa que vêm sendo feitas na área contábil continuam sem respaldo na área tributária. Apesar disso, a cada nova orientação contábil aprovada em audiência pública, nota-se uma tendência real de harmonização dos princípios contábeis brasileiros às normas internacionais no curto prazo. E grande parte dessa harmonização já impacta os balanços do ano de 2008 a serem publicados no início do ano que vem. A grande questão é: isso vai aumentar a carga tributária das empresas? Uma resposta simplista diria que não uma vez que a Lei nº 11.638, de 2007, que desencadeou esse processo de mudança das regras contábeis, e que alterou a Lei das Sociedades Anônimas de 1976, define que os lançamentos de ajuste efetuados exclusivamente para harmonização das normas contábeis não poderão ser base de incidência de impostos e contribuições nem ter quaisquer outros efeitos tributários. O caso é que, na prática, através de uma análise mais profunda das mudanças que ocorrerão nos balanços, vemos que podemos estar diante de um aumento de carga tributária (indireta) dependendo, claro, da disposição e vontade dos legisladores e das autoridades fiscais. Isso porque, historicamente, a apuração dos impostos corporativos - notadamente imposto de renda e contribuição social sobre o lucro (CSLL) - segue a apuração do lucro líquido contábil, ainda que com alguns ajustes de adições e exclusões fiscais. Assim, a menos que haja ajustes específicos definidos na legislação tributária, qualquer mudança contábil gera uma mudança e impacto tributário. Quando da edição da nova lei, muitos acreditavam que o Brasil estaria caminhando para a apuração dos impostos de uma forma parecida com o que ocorre em outros países como os Estados Unidos, ou seja, haveria dois balanços, um para a apuração contábil e outro para a apuração fiscal, com critérios e resultados diferentes. Enquanto o mercado especializado inteiro discutia esse assunto, a 10ª Região Fiscal da Receita Federal responde a uma consulta formal feita por um contribuinte tratando do efeito fiscal decorrente da mudança contábil trazida pela nova lei, no qual os incentivos fiscais reconhecidos pelas empresas beneficiadas deveriam ser contabilizados como receita - aumento do lucro - e não mais como reserva - conta patrimonial que não aumenta o lucro do período -, como era a prática contábil anterior. A conclusão do fisco foi que não há suporte legal para se excluir essa receita e, consequentemente, a mesma deveria ser tributada. Ora, mas e a disposição expressa que garante que não haverá impacto tributário em decorrência das mudanças contábeis para a harmonização internacional? Há outro caso de absoluta sensibilidade que se refere ao ágio pago por empresas que adquirem outras empresas por preço superior ao valor contábil. De acordo com a norma fiscal que vem sendo aplicada há anos, esse ágio, após um processo de incorporação, por exemplo, e dependendo do seu motivo econômico (expectativa de rentabilidade futura ou mais valia de ativos), pode ser amortizado e considerado dedutível na apuração fiscal. Essa possibilidade surgiu quando o país vivia o período das grandes privatizações, como um incentivo aos investidores que estavam adquirindo as empresas por valores muito superiores aos valores contábeis das empresas. E, não resta dúvida que a possibilidade dessa dedução continua sendo um dos grandes atrativos que o Brasil pode oferecer aos investidores nacionais e internacionais, especialmente em um país onde a elevada carga tributária, assim como sua enorme complexidade, não nos favorece quando comparamos as cargas e sistemas tributários de outros países. A Deliberação nº 553 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aprova o pronunciamento técnico do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) nº 4, que trata de ativos intangíveis. De acordo com esse pronunciamento, o ágio derivado de expectativa de rentabilidade futura não pode ser amortizado por não poder ser identificável ou alocado aos ativos específicos da empresa adquirida. Caso não haja uma regra fiscal permitindo a utilização do referido ágio para dedução na apuração fiscal, acaba o benefício e o incentivo para os investidores, na maioria dos casos. Isso porque, em muitas aquisições, o ágio decorre dessa expectativa de lucros futuros da empresa adquirida, especialmente quando esta é uma empresa de serviços ou qualquer empresa cujo valor está na capacidade intelectual ou comercial das pessoas que lá trabalham e não nas cadeiras e portas do escritório. Em termos práticos, na maioria dos casos, os preços das aquisições são baseados em cálculos financeiros direcionados para o que se chama de Ebitda ("earnings before income tax, depreciation and amortization") e para os lucros que aquele investimento vai gerar nos anos seguintes, avaliando-se em quanto tempo o valor investido poderá ser recuperado ("discounted cash flow"). Não precisamos entrar na discussão contábil sobre esse tema, mas devemos sim entrar na discussão fiscal, uma vez que, na essência, o negócio foi feito e o ágio foi pago com um sólido fundamento econômico o que, por sua vez, deveria permitir a dedução fiscal, considerando a regra fiscal atual - a Lei nº 9.532, de 1997 - e, independentemente da não-amortização para fins contábeis. O que preocupa mesmo é o fato que, mesmo tendo-se passado meses desde a edição da nova lei e, com tantas mudanças na área contábil, o fisco simplesmente não se manifesta, mantendo um incômodo silêncio que traz insegurança para todos os negócios e operações que estão sendo feitos nesse ano de 2008. A única manifestação, que ainda não pode ser considerada como sendo institucional por ter sido feita através de resposta a um contribuinte específico e por uma região fiscal específica, foi frontalmente contrário ao espírito da Lei nº 11.638, no que se refere aos impactos tributários das mudanças contábeis. Finalmente, aguarda-se com ansiedade e esperança um posicionamento formal do fisco brasileiro quanto aos reflexos fiscais de todas essas mudanças para a harmonização dos padrões contábeis brasileiros com os padrões contábeis internacionais. Também é esperado bom senso, na medida em que deve ser avaliado o momento de crise global que estamos presenciando. Nesse sentido, deveríamos aproveitar para fortalecer ainda mais o país como um participante relevante para onde os investidores devem ir. Poderia parecer incoerente termos um aumento de carga tributária indireta, decorrente do exposto neste artigo, em um momento onde os investimentos estão escassos e em que o Brasil deve se posicionar ativamente para aproveitar as oportunidades que possam surgir dessa crise. Roberto Haddad é sócio da área de tributação internacional da KPMG no Brasil