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O STJ e a inversão judicial do ônus da prova da responsabilidade tributária do sócio

No julgamento do Recurso Especial nº 1.104.900/ES, relatado pela Ministra Denise Arruda, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que uniformiza a jurisprudência das duas turmas de Direito Público da Corte

Autor: Ricardo Lodi RibeiroFonte: Fiscosoft

No julgamento do Recurso Especial nº 1.104.900/ES, relatado pela Ministra Denise Arruda, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que uniformiza a jurisprudência das duas turmas de Direito Público da Corte, entendeu que cabe ao sócio cujo nome consta na certidão da dívida ativa (CDA) o ônus da prova da inexistência de responsabilidade tributária. A decisão é preocupante por se traduzir em um julgado que uniformiza a orientação do Tribunal numa direção que legitima uma prática muito comum na cobrança do crédito tributário, que é a direcionamento do executivo fiscal aos sócios das empresas, sem qualquer preocupação quanto à existência de responsabilidade tributária. Infelizmente, é cotidiana a prática de alguns órgãos responsáveis pela cobrança judicial de tributos incluírem automaticamente todos os sócios da empresa no pólo passivo da relação processual executiva, sem qualquer pesquisa ou alegação quanto à existência de responsabilidade tributária, conduta leviana que já está a merecer um estudo no plano da responsabilidade civil do Estado.

O mais curioso é que a própria Primeira Seção do STJ, no EREsp nº 260.107/RS, relatado pelo Ministro José Delgado, também uniformizou a jurisprudência no correto sentido de que a responsabilidade tributária do sócio depende na existência dos requisitos do art. 135 do CTN: violação da lei, do contrato ou estatuto social, ou a ação com excesso de poderes, não constituindo o mero inadimplemento tributário razão suficiente para a inclusão do sócio no pólo passivo da execução fiscal. Deste modo, é necessário o animus de lesar a Fazenda Pública, a partir da prática de um ato ilícito.

Assim, de acordo com a posição recentemente assumida pela Primeira Seção do STJ, embora o sócio não seja sujeito passivo da obrigação tributária (a não ser que pratique um ato ilícito), diante da automática inclusão de seu nome na CDA, sem qualquer imputação de responsabilidade tributária na esfera administrativa, deve fazer prova negativa de que não violou a lei ou contrato social ou agiu com excesso de poderes. Ou seja, provar que não praticou nenhum ato ilícito! Obviamente poderá ele provar com facilidade de não era sócio no momento em que o fato gerador foi praticado. Mas, sendo efetivamente sócio-gerente, ou até mesmo apenas sócio, como provar que durante sua gestão ou período como sócio, não praticou qualquer ato contrário ao Direito? Vai defender-se genericamente contra qualquer possível conduta praticada sem imputação pela Fazenda Pública de qualquer ato, fazendo prova de fato negativo? É a chamada probatio diabolica, cuja produção é das mais difíceis, reduzindo drasticamente as chances de defesa daquele que suporta o ônus probatório.

O fundamento da decisão no RE nº 1.104.900/ES, que impõe o ônus da prova ao sócio, é a presunção de liquidez e certeza do crédito tributário, estabelecida pelo artigo 204 do Código Tributário Nacional. Ocorre que essa presunção, que, segundo o parágrafo único do mesmo artigo, é relativa, se refere ao crédito, e diz respeito à sua existência e seu montante. E não quanto ao seu sujeito passivo. A rigor, não há presunção a respeito da existência de responsabilidade tributária.

Cumpre lembrar que a presunção de liquidez e certeza do crédito tributário é resultante de um procedimento administrativo fiscal onde é garantido ao sujeito passivo o contraditório e a ampla defesa. Em nosso ordenamento jurídico só é possível à Fazenda Pública constituir o seu próprio título executivo se este for extraído de um procedimento administrativo, submetido a todas as garantias constitucionais processuais, sob pena de lesão à cláusula do devido processo legal.

Vale destacar que se o nome do sócio já constava do lançamento, tendo-lhe sido facultada a defesa em relação não só à existência da dívida, mas também em relação à sujeição passiva, pode-se admitir a presunção de liquidez e certeza do crédito em relação a ele, sem que haja violação do contraditório e da ampla defesa. No entanto, o mais comum é que o redirecionamento contra o sócio já se dê na fase de inscrição em dívida ativa, sem que o nome do responsável tributário tenha constado do lançamento, o que inviabiliza a sua participação no procedimento administrativo fiscal.

Não se está aqui defendendo a necessidade de um novo procedimento administrativo contra o responsável tributário em caso de necessidade de redirecionamento da execução fiscal contra ele. Esse pode dar-se por ocasião da inscrição em dívida ativa ou até depois do ajuizamento da execução fiscal. Porém, é forçoso reconhecer que, em relação a quem não participou do contencioso administrativo, não há qualquer presunção, cabendo à Fazenda Pública o ônus de provar que ocorreu a responsabilidade tributária se esta alegação se mostrar controvertida pela oposição de embargos à execução, ou até, se for o caso, de exceção de pré-executividade. Reconhecer o contrário significa admitir a possibilidade de ajuizamento da execução fiscal sem a prévia necessidade de um procedimento administrativo para apurar o débito. É isso o que ocorre em relação à execução contra o responsável cujo nome não figurou no lançamento.

Como se vê, não havendo presunção legal em relação à responsabilidade tributária para aquele cujo nome não constou do lançamento, a atribuição de ônus da prova ao sócio constitui uma presunção judicial não autorizada por lei, o que inexiste em nosso sistema jurídico que só prevê a possibilidade de fixação de presunções: a) por lei; b) por contrato; ou c) pelo juiz, sendo neste caso indispensável a autorização legal. Ocorre que, no presente caso, não existe presunção legal ou autorização da lei para presunção judicial. De todo modo, mesmo nas presunções criadas pela vontade das partes, não há inversão do ônus da prova quando esta tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício de direito (art. 333, parágrafo único, II, CPC), como se dá nas provas negativas. Com maior razão, o mesmo se dá quando a presunção é estabelecida ou autorizada pela lei.

É fato que não existe no Direito brasileiro essa presunção da prática de ato ilícito, capaz de desconsiderar a personalidade jurídica da empresa. E nem poderia haver, já que a responsabilidade tributária do sócio não é objetiva, mas depende da comprovação de ato ilícito, cuja prova, no Estado Democrático de Direito, depende de imputação e de comprovação por parte da Administração Pública.

Ao exigir do suposto responsável tributário a prova negativa da inexistência de ilicitude, o STJ acaba por, na prática da maioria dos casos, estabelecer uma responsabilização tributária objetiva sem amparo legal, além de tornar meramente retórico o seu posicionamento anterior, que consagrava as regras do Código Tributário Nacional que exigem a prática de ato ilícito para a caracterização da responsabilidade tributária.

É que hoje, diante da rotina administrativa de incluir automaticamente todos os sócios no pólo passivo das execuções fiscais, independentemente de apuração de responsabilidade tributária, o cidadão que integra o quadro societário de uma empresa é obrigado a conviver, sem justo motivo, com certidões positivas de débito por anos a fio, que lhe inviabilizaram, na prática, a disposição do seu patrimônio pessoal. Afinal de contas, ninguém está disposto a adquirir bens dos devedores do Estado. Como a nova orientação, o quadro fica ainda mais grave, uma vez que dificilmente conseguirão um dia livrar-se da injusta cobrança pela grande dificuldade de fazer prova negativa quanto à prática de uma ilicitude que sequer chegou a lhe ser imputada. Como isso, a execução fiscal contra o sócio ganha vivos contornos d'O Processo, de Franz Kafka, onde o sistema judiciário impedia ao protagonista Joseph K., o conhecimento da acusação que lhe era dirigida.